Uma nova chance à vida
Adoção ainda é tratada com indiferença por muitos, mas é a única solução para crianças e adolescentes abandonados ganharem uma nova família
Mais um dia com o olhar fixo no portão. Nenhuma visita. Só o sonho de ter uma família. Durante dois anos essa foi a rotina do pequeno Yuri no Lar Transitório de Cachoeira do Sul. Abandonado pela mãe, o garoto de pele negra e já com quatro anos de idade fugia completamente do perfil ideal procurado por pretendentes à adoção: crianças brancas, com até 18 meses de vida. Mas, diferente da maioria que passa por uma situação como essa, a estória do Yuri teve um final feliz. Há dois anos ele foi adotado e hoje vive com os novos pais, o empresário Adriano Keller, 35, a mãe, acadêmica do curso de Enfermagem, Jocimara Machado, 34.As marcas do abandono sofrido nos primeiros anos de vida ainda não deixaram Yuri. Até hoje ele sofre com dificuldades para caminhar e falar. “Quando visitei pela primeira vez o abrigo, incentivada por um amiga, logo me apaixonei. Na época o Yuri estava muito debilitado. A falta de carinho materno havia atrasado muito seu desenvolvimento. Apesar de receber atendimento de fonoaudióloga, ele continua com muita dificuldade para se expressar”, conta a mãe do menino, que já completou seis anos. Exemplo de amor e doação como o dessa família ainda é raro. Falta de informação e preconceito são os fatores que mais dificultam os processos de adoção.
Um dos grandes obstáculos é o mito de que adotar é um processo demorado e burocrático, o que leva muitas vezes o interessado a desanimar e até desistir da ação. Segundo o juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Cachoeira do Sul, André Dorneles, 34 de idade e seis de profissão, adotar é um processo simples, mas com etapas fundamentais para serem seguidas. O primeiro passo para quem tem esse desejo é procurar o Juizado da Infância e Juventude e se cadastrar. Quanto menos restrições em relação às características de quem se pretende adotar, mais rápido pode ser a chegada da criança. “Restringir a adoção a uma série de características acaba emperrando o processo. Às vezes o interessado espera anos e anos na fila de adoção, geralmente em busca de um bebê de até 18 meses. Enquanto isso, os meninos e meninas crescem nos abrigos e vêem a chance de ganhar uma nova família se tornar escassa”, ressalta o juiz.
Destino incerto
Não existe um tempo médio de tramitação dos processos de adoção. As autoridades ligadas ao assunto reconhecem que não se trata de uma ação rápida. “Esses processos dependem da destituição do poder familiar onde os pais biológicos perdem definitivamente o direito de exercer a paternidade sobre os filhos. Como se trata de medida extrema, exigem estudos sociais, laudos e avaliações psicológicas e, por isso, não tem como acontecer de uma hora para outra”, explica a promotora Giani Saad, 32 anos de idade e cinco de profissão.
Entretanto, o interessado em adotar não precisa esperar toda essa tramitação para começar a conviver com a criança ou adolescente que pretende adotar. Segundo o juiz André Dorneles, logo que o adotante tido como apto ao processo pela Justiça se interesse por uma criança ele ganha a guarda provisória e pode levá-la para morar em sua casa até que a adoção definitiva seja dada. Nesse período o Judiciário acompanha a adaptação ao novo lar e ao novo integrante da casa. “Essa etapa é muito importante não só para a criança. A família precisa ter certeza que está tomando a atitude certa, já que depois de feita, a adoção é irrevogável, ou seja, a criança ou adolescente se torna filho e não pode mais ser devolvido”, explica.
Quem pode adotar?
De acordo com a promotora Giani Saad, para se habilitar à adoção o interessado pode ser tanto homem como mulher, solteiro ou casado e maior de 21 anos. O adotante tem que ser pelo menos 16 anos mais velho que a criança ou adolescente que pretende adotar e não pode ser seu avô ou avó e nem irmão.
Números são animadores
Sem crianças disponíveis para a adoção em Cachoeira, juiz defende o apadrinhamento de quem vive no Lar Transitório à espera de uma decisão judicial
Os números da adoção vêm crescendo em todo o estado. Segundo dados da Justiça da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul, em 2000 somente 12 processos foram concluídos. Já em 2006, o número foi de 858 adoções. Cachoeira tem acompanhado os índices só que de forma mais lenta. Em 2004 e 2005, quatro crianças foram adotadas no município. Em 2006, esse número subiu para seis. Os números oficiais de 2007 só serão divulgados no final do ano, mas já se sabe que nos últimos dois meses duas crianças ganharam um lar definitivo na cidade.
No final do mês de setembro, apesar do Lar Transitório estar abrigando 14 moradores, não havia nenhuma criança disponível para adoção no município. Já no cadastro de interessados na ação estavam registrados cerca de 30 nomes. Segundo Dorneles, isso não significa que os interessados devam desistir, pois o cadastro de adotantes aptos vale para a rede de adoção de todo o Rio Grande do Sul. “Como temos essas crianças e adolescentes vivendo no abrigo e não estão disponíveis para a adoção uma solução para que elas não fiquem desamparadas é o apadrinhamento”, aconselha o juiz.
O apadrinhamento pode ser feito por qualquer pessoa desde que tenha autorização do Conselho Tutelar. Essa ação pode ser o primeiro passo para a adoção ou pode servir apenas como um gesto de carinho a quem, muitas vezes, perdeu o contato familiar. “Essas crianças e adolescentes que vivem em abrigos já têm naturalmente uma carência muito grande por estarem afastadas da sua família e os monitores, por melhor que sejam, não conseguem suprir essa falta de carinho. Por isso, a conscientização dessa necessidade de apadrinhamento é fundamental”. Dorneles ainda salienta que os voluntários não precisam dar ajuda financeira e sim servirem apenas como benfeitores, levando a criança para passear ou para passar o dia ou final de semana em sua casa.
"Quando uma mulher engravida não sabe como o filho será, se vai ser feio ou bonito, saudável ou não, mas a família irá aceitá-lo e amá-lo de qualquer jeito. A adoção também deveria ser assim, irrestrita."
André Dorneles - Juiz da Infância e Juventude de Cachoeira do Sul
À espera de uma família
Em geral, as crianças e adolescentes que vivem em abrigos não são órfãos e não estão aptas à adoção. Elas apenas aguardam uma decisão sobre seu futuro
“Quero voltar para a minha casa”, foi a resposta de uma menina de 11 anos quando questionada sobre o seu maior sonho. Há mais de um ano afastada do convívio familiar e morando no Lar Transitório de Cachoeira do Sul, ela demonstra fragilidade e insegurança ao se expressar. A pré-adolescente que recebe esporadicamente a visita da mãe tem sua situação perante a Justiça ainda indefinida. Um processo de destituição do poder familiar sobre ela está tramitando, já que a tentativa de inseri-la no ambiente familiar fracassou.
Drama parecido é o de três irmãos que também vivem no abrigo. Sem ver qualquer membro da família há mais de dois meses, o mais velho com seis anos diz que sente muita saudade da sua casa e da mãe. Assim como essas crianças, muitas outras vivem a mesma situação. Com 14 moradores, o Lar Transitório na cidade já perdeu a característica expressa no nome para se tornar um lar quase definitivo. Todas as crianças estão lá há mais de um ano, entretanto nenhum está apto para ser adotado.
Essa característica acompanha uma tendência nacional. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cerca de oito mil crianças estão à espera de um novo lar em todo o país. O número representa apenas 10% dos 80 mil jovens que vivem em abrigos. O restante está na mesma condição dos moradores do Lar Transitório na cidade: ou voltarão a viver com suas famílias ou serão disponibilizados para a adoção. O que mais chama a atenção no perfil dessas crianças e adolescentes é que nenhum deles é órfão e todos possuem familiares como avós, tios e irmãos.
Drama: em geral, as crianças e adolescentes chegam ao abrigo muito fragilizadas e inseguras
O papel dos abrigos
Os abrigos, em geral, são instituições sérias e comprometidas com o desenvolvimento das crianças e adolescentes, mas nem de longe conseguem substituir um lar. De acordo com a psicóloga que acompanha a rotina do abrigo na cidade, Silvia Letícia Freitas Neto, 26 anos de idade e dois de profissão, a Prefeitura, mantenedora da instituição, tem colocado em prática projetos para diminuir a carência das crianças que se encontram na entidade. “Oferecemos atendimento psicológico e tentamos promover atividades pedagógicas, mas ainda está longe do ideal. A falta de profissionais é um dos grandes obstáculos”, observa. Uma das propostas para inserir os pequenos na sociedade é o calendário de passeios, onde eles visitam feiras, vão ao cinema ou visitam outras instituições.
“Toda a criança que chega aqui em geral está muito abalada e fragilizada de tudo. Priorizamos os cuidados básicos como alimentação, higiene e educação, mas não deixamos de desenvolver atividades para fazer o tempo passar de forma mais rápida”, ressalta uma das monitoras, professora Vilma Vidal dos Santos, 40 anos de idade e nove meses de abrigo. Para a promotora Giani Saad, o papel do Lar Transitório é fundamental, pois representa uma família para as crianças que por sofrerem maus-tratos, abusos sexuais e agressões de toda ordem, não puderam permanecer ao lado dos pais. “O afeto e cuidado obtido junto ao lar impedem que essas crianças sejam abandonadas por completo”, ressalta.
Celita com a caçula Lauren: mãe de duas filhas biológicas e sete adotivos
Uma família inesperada
Celita dá exemplo de dedicação e solidariedade
Coração de mãe sempre tem espaço para mais um. Esta frase bastante conhecida descreve perfeitamente a vida da dona-de-casa Celita Knappe Losekann, 59 anos. Mãe de duas filhas biológicas, Silvana, 36, e Flaviana, 34, ela diz que desde a infância sonhava em ter filhos adotivos. Ela realmente levou esse projeto à risca. Hoje, além das filhas legítimas, Celita possui outros sete filhos adotados: Iria, 41 anos, Emanuela, 24, Fábio, 23, Vanúcio, 20, Jaison, 18, João Paulo, 9, e Lauren, 4. “Sei que não vou mudar o mundo, mas estou fazendo a minha parte e se surgir oportunidade de ter novos filhos, não vou pensar duas vezes”, conta.
Muita luta para garantir o sustento marcou a vida da dona Celita. “O Vanúcio tem uma lesão cerebral que paralisou todo o lado esquerdo do corpo e quando decidi adotá-lo meu marido não aceitou. Quando cheguei em casa com meu filho ele disse: agora tu escolhe, ou eu ou ele. Escolhi o Vanúcio”, lembra. Essa escolha exigiu muitos sacrifícios. Celita precisou vender lanches em escolas para poder garantir o conforto da família que não parava de crescer. “Nunca me arrependi de ter ficado com o Vanúcio e nem de ter adotado qualquer um deles. Apesar das dificuldades que enfrentei, me sinto uma pessoa realizada”, observa. Hoje, Celita organiza excursões turísticas para manter a casa.
Iniciativas para incentivar a adoção ainda não são comuns no Brasil. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) decidiu mudar isso lançando em maio a campanha Mude um Destino. Através dessa proposta a entidade está distribuindo em todo o país duas cartilhas, uma com os detalhes do processo de adoção e outra com informações para os próprios abrigos. O principal objetivo é esclarecer e derrubar mitos sobre a adoção.
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